Espirituoso e espiritista do vinho. Assim se poderia resumir numa frase, após alguns minutos, o jovem proprietário de uma pequena garrafeira da zona medieval da cidade de Lyon, em França.
Espirituoso porquê? Georges dos Santos, 37 anos e um visual "à Tintim", colocou uma radiografia do fígado à entrada do estabelecimento, entre as prateleiras com pequenas frases, citações e comentários humorísticos sobre o vinho.
Espiritista porquê? Porque faz descer clientes à cave escura onde, sobre uma longa mesa de madeira, invoca os nomes ancestrais impressos nos rótulos das garrafas para os tratar por tu dentro de um copo. O ritual é conhecido dos maiores chefes da cozinha francesa, restauradores ou simples turistas, instalados ou de passagem pela cidade, considerada a capital gastronómica francesa.
Georges dos Santos auto-apelida-se de "escanção voador", a planar algures entre as raízes de uma família nascida nos arredores de Aveiro, os vinhedos que circundam a cidade de Lyon ou qualquer aldeia remota onde um pequeno produtor aceite juntar uma prova de vinho a dois dedos de conversa.
Lusodescendente apaixonado pela gastronomia e vinhos portugueses, orgulha-se de ter na sua loja uma das melhores ofertas de vinhos do Porto antigos em França, que enumera como velhos conhecidos: Quinta do Noval 1963, 1947, 1945, Mag-num 1955, Quinta do Vesúvio 1970, Ramos Pinto 1935.
Compra-os em Inglaterra, um dos maiores mercados de vintage. Alguns encontra-os ainda em Portugal. Mas antes de ser porto de abrigo, o vinho licoroso é uma metáfora de viagem para o jovem lusodescendente. "Em 1997 decidi fazer uma longa viagem para tentar provar o máximo de vinhos possíveis, no mesmo ano em que dois vinhos portugueses eram considerados os melhores do mundo - Fonseca e Taylor's, colheita de 1994. O Porto é um vinho de viagem, era mesmo chamado de ida e volta, foi vinificado para resistir aos longos percursos até ao outro lado do mundo."
E foi como o vinho do Porto, que percorreu o mundo - de África à Austrália. Depois de anos a trabalhar para os mais conceituados restaurantes de Lyon, na sala e na cozinha, lançou-se à aventura no mundo dos vinhos. Em Inglaterra trabalhou para os reputados Terence Conran, Alain Ducasse ou a família Makthoum do Dubai, antes de passar por Espanha. Em Portugal, passa pelo restaurante Basófias, em Coimbra, uma escala na viagem que o leva à África do Sul, Nova Zelândia, Austrália, México, Cuba, Estados Unidos. Parte com um orçamento muito reduzido, trabalha nos restaurantes durante a semana, e nos tempos livres mergulha em vinhedos e caves para descobrir os vinhos de cada país, aprendendo a recitar a difícil e apaixonante gramática dos vinhos. E vai formando o paladar, muitas vezes à procura dos sabores das férias de infância em Portugal.
"Só na Austrália visitei centenas de vinhedos. Ali encontrei o mesmo vinho espumante tinto que se faz em Portugal, na Bairrada, mas do outro lado do mundo, na Barossa. O nome é parecido. E quando perguntamos aos habitantes porque bebem aquele vinho com taninos tão fortes, dizem que é fantástico a acompanhar com canguru assado e em Portugal bebemos espumante com leitão assado". Mas o Japão, país de origem do sócio com quem trabalha, continua a ser o território de eleição. "O bolo nacional japonês é o castella, o pão-de- -ló que os portugueses levaram quando comerciavam armas. O tempura, o prato nacional de peixe frito, também foi trazido pelos portugueses. E quando estou no Japão e as pessoas me dizem para comer tempura ou sushi, digo-lhes sempre que só acompanhado por um bom Alvarinho."
No seu diário de viagem, os vinhos marcam as escalas. "Quando cheguei à Florida, a Tampa, e abri a carta dos vinhos e vi um Barca Velha de 1966, pedi logo para que me abrissem uma garrafa." Se durante anos, em França, enfrentou com alguma reserva o facto de ser de outra origem, foi em viagem que se redescobriu português. "A cultura portuguesa conseguiu fazer viajar o seu próprio vinho por todo o mundo." E é com as pupilas cheias de sabores e cheiros de vários continentes que surpreende hoje o mundo gastronómico de Lyon. A convite da casa de chocolates Richart, organiza todos os anos uma prova de vinhos e chocolate, onde para cada bombom há um vinho - do Porto ao inesperado eiswein austríaco cujo processo de vinificação passa pelo congelação dentro dos barris. Mais do que um coleccionador de garrafas, é um coleccionador de sabores. "Bebo com prazer tudo o que é dos anos 70", afirma. Quinta do Noval 1970, Vega Sicilia, La Romanée Conti, são alguns dos favoritos, sem nunca esperar por um momento especial para recorrer ao saca-rolhas deste espirituoso e espiritista do vinho. O seu próximo projecto, que o levará brevemente a Portugal, em "visita de estudo", passa por continuar a fundir sabores de viagem, em especial as culturas portuguesa e japonesa, no copo e no prato, em exercício de circum-navegação gastronómica. Como um "Tintim" com laivos de Fernão de Magalhães. |