Uma obsessão nacional
Rui Falcão | Suplemento Fugas, Jornal Público | 04-09-2010

É a casta do momento, o veículo de promoção dos vinhos portugueses, uma das poucas variedades nacionais com capacidade para se afirmar internacionalmente como bandeira dos vinhos portugueses. Poderá a Touriga Nacional ser a imagem de Portugal?

Para o bem e para o mal, com o entusiasmo de uns, a complacência de outros... e para desconforto de alguns, a Touriga Nacional instituiu-se de vez como a casta portuguesa de excelência, o emblema internacional de Portugal, a variedade mais conhecida e identificativa das mais de trezentas castas autóctones existentes no país. A sua eleição e recente aclamação resultaram de um processo de apuramento natural, de uma predilecção quase universal pelas suas características e qualidades, numa decisão independente de nomeações políticas ou das sentenças de secretaria que por vezes pervertem a racionalidade da sociedade portuguesa.

Não foi certamente por obra do acaso que a Touriga Nacional se espalhou de forma franca e consistente por todo o território nacional, convertendo-se na casta fetiche de tantas regiões e de tantos produtores nacionais, comparecendo na pluralidade dos lotes dos melhores vinhos pátrios. Se em tempos a sua arrumação geográfica se resumiu às regiões do Dão e Douro, com cada uma das regiões a reivindicar a sua paternidade, hoje a casta encontra-se presente por todos os recantos do país.

De norte a sul, do interior ao litoral, do continente às ilhas, dos climas mais secos aos ambientes mais húmidos, da planície à montanha, das regiões mais clássicas e conservadoras às regiões mais dinâmicas e progressistas, das denominações mais ricas em castas autóctones às denominações mais parcas na diversidade, a Touriga Nacional conseguiu aclimatizar-se e prosperar, oferecendo perfis distintos segundo as características de cada um dos seus novos lares.

Sim, é verdade que as modas vêem e vão, consoante as marés e os ventos que sopram na ocasião. Sim, é seguro que a afeição pela casta nem sempre foi correspondida e que a Touriga Nacional, hoje tão valorizada, já foi, num passado relativamente recente, uma casta desprezada, quase escorraçada das novas plantações durienses, condenada de forma genérica pela sua baixíssima produção. O que hoje é seguro, nem sempre o foi no passado...

Porém, apesar da espontaneidade da escolha da casta Touriga Nacional como montra privilegiada dos vinhos nacionais, nem todos concordam com a sua nomeação para porta-voz dos vinhos lusitanos. Para alguns, a simples ideia de reduzir a expressão da imensa diversidade da ampelografia nacional a uma só variedade, por muito boa que esta seja, e a Touriga Nacional é-o certamente, sobrevém como uma aposta redutora e potencialmente perigosa.

Enfileirar a promoção internacional de um país que possui mais de trezentas castas válidas e únicas apoiando-se somente em uma, poderá suscitar alguns melindres congénitos. Promover uma só variedade num país com um passado histórico, tal como na actualidade, que continua a privilegiar os vinhos de lote, associando múltiplas castas no mesmo vinho, é razão suficiente para levantar algumas questões pertinentes.

E, claro, tal como acontece com todos os casos de sucesso palpável, também a Touriga Nacional acabou por ganhar os seus detractores fiéis, sofrendo um processo de condenação devoto por parte de alguns sectores descontentes, acusada de promover a desgraça de converter os vinhos portugueses numa imensa sensaboria... deixando-os em tudo idênticos.

Uma acusação ambígua e fortuita, que, a ser considerada, acabaria por condenar ao fado da monotonia a maioria das regiões internacionais, assentes num pequeno núcleo de castas. Imagina-se, por exemplo, e para ilustrar a demagogia da afirmação, a perspectiva de um francês querer sentenciar toda a região de Bordéus a uma infinita insipidez por todos os produtores utilizarem as mesmas castas, Cabernet Sauvignon, Cabernet Franc e Merlot, aqui e ali completadas por um ou outro tempero? Ou, seguindo o mesmo raciocínio, imagina-se a perspectiva de um alemão estigmatizar as regiões de Mosela ou Rheingau a um tremendo tédio, por todos os produtores viverem de uma só casta, o Riesling?

Curiosamente, e apesar de se falar tanto da Touriga Nacional, os vinhos estremes da casta continuam relativamente raros. Na verdade, e por algum estranho paradoxo que a razão nem sempre consegue explanar, hoje existem menos vinhos estremes de Touriga Nacional que num passado recente, quando a casta estava menos dispersa pelo país e quando ainda não beneficiava da mesma deferência que colhe actualmente. O que, assumindo o desejo institucional de querer promover internacionalmente a variedade... acaba por ser um contra-senso da produção!

Para os produtores de sempre, tal como para a quase totalidade dos novos produtores que investiram nos vinhos estremes da Touriga Nacional, o paradigma tem sido relativamente semelhante, apostando em vinhos fermentados e estagiados em madeira, vinhos do segmento superior, com maior ou menor sucesso qualitativo e comercial.

De entre os clássicos, o padrão evidente a transcrever têm sido a Quinta do Crasto e a Quinta dos Roques, respectivamente do Douro e Dão, os dois produtores de referência nos vinhos estremes da casta. Estranhamente, raramente se avistava a casta sem o tradicional estágio em madeira, apresentada numa versão mais leve, franca, frutada e sedutora. Uma tendência que parece agora querer alterar-se com a maturidade do T-Nac, da Quinta da Falorca, no Dão, um Touriga Nacional estreme sem passagem por madeira.

A edição 2008 apresenta-se tremendamente fresca, vibrante na acidez, floral até dizer basta, seca e tensa, num vinho alegre e vivo, de carácter nervoso, que se porta de forma brilhante à mesa. Igualmente interessante está o Costa do Pombal Touriga Nacional Unoaked 2009, da Vallegre, no Douro, directo e sensual, com a fruta a apontar o caminho.
 
 
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