As Horas do Douro, de António Barreto e Joana Pontes, um filmesobre o Douro vinícola visto "a partir do pé da enxertia", estreia hoje no IndieLisboa.
- "O António já tinha esta ideia de fazer o filme há imenso tempo, e quando fizemos o Portugal: Um Retrato Social comecei a envenenar..."
- "Foi ela a culpada! Eu já tinha desistido de fazer filmes sobre o Douro há 200 anos..."
Joana Pontes e António Barreto riem-se com a cumplicidade de quem já se conhece muito bem. É isso que faz de As Horas do Douro um filme "a meias", mesmo quando o sociólogo admite que acompanhou menos o processo de construção do que na sua anterior colaboração na aclamada série documental Portugal: Um Retrato Social.
Depois das viagens ao Douro para filmar entrevistas e recolher material (meia dúzia de incursões-relâmpago de seis, sete dias, para capturar o processo de evolução e produção do vinho do Porto ao longo das estações do ano), Barreto acompanhou pouco a montagem - "por afazeres e trabalho meu", explica. "No Portugal, acompanhei tudo mais de perto, não tive choque nenhum. Houve um momento, penso que a três versões do fim, que fiquei destroçado: onde está o que falta? Quando fui ver as duas últimas montagens, tudo mudou, porque o que eu via antes como buracos, lacunas, de repente era uma coisa compacta, fluida."
Essa "coisa compacta, fluida" é uma longa-metragem de 98 minutos (aparada de uma primeira versão de cinco horas) que estreia hoje no festival IndieLisboa, enquanto não se anuncia uma data de estreia em sala. As Horas do Douro é um olhar sobre o Douro vinícola, visto, como diz Barreto, "a partir do pé da enxertia, do bago de uva, da folha da parra". Um filme pensado, segundo Pontes, como "uma espécie de livro de horas, onde se regista o que vai acontecendo".
E um filme sobre "um tesouro que parece que não se vê", como diz a certa altura do documentário Dirk Niepoort, actual responsável da casa familiar que já vai na quinta geração de produção de vinhos: o vinho do Porto, um vinho "muito especial, que deve a sua fortuna ao facto de ser um vinho muito local, muito do terroir", segundo o sociólogo, usando a expressão francesa que designa a conjugação de factores geográficos que dá a cada vinho o seu carácter particular.
"Uma das razões pelas quais começámos a trabalhar [neste projecto] foi o filme Mondovino, que sublinhava a discussão entre o global e o terroir. O Porto sempre foi um vinho do terroir, mas do ponto de vista comercial e de consumo foi muito depressa um vinho global, feito para o mundo inteiro."
A dois tempos
E As Horas do Douro acompanha o processo de produção do vinho, prestando especial atenção "à terra, ao ambiente, ao clima, ao tempo, às estações", falando com as pessoas "que andam ali há anos e com as novas que chegam e querem fazer qualquer coisa". Mas também recordando o modo como o Douro mudou ao longo do último século, através das imagens dos livros onde os proprietários iam registando colheitas e vindimas, "livros que eles têm lá a um cantinho, deixados pelos tetravôs ou pelos proprietários originais, que são uma coisa extraordinária", segundo Joana Pontes.
"Eles registavam realmente a Natureza - se chovia, se não chovia, se nevava, se estava quente... As preocupações são sempre as mesmas. Pensei muito nisso, e quando as minhas filhas me perguntavam, "então este filme é sobre o quê?", eu respondia que é sobre o tempo." Ou, melhor, sobre "dois tempos: o tempo da paisagem, que é um tempo circular, previsível, que dá a volta; e o tempo da nossa vida, que corre, que vai numa direcção e que aquelas pessoas transportam na sua própria memória".
"No Douro", diz Barreto, "não se pode viver sem memória. O peso da história e do tempo é permanente. Qualquer pessoa com quem se fale diz logo, "há vinte anos não era assim", "este vinho é muito parecido com o de 1972"... Você vai às caves e tem vinhos com dez, cinquenta, cem anos... Uma garrafa com 110 anos é uma obra que está ali. São 110 anos de tratamento, de cuidado, de boa temperatura, de boa posição..."
É uma história que só se pode contar com uma grande dose de amor? António Barreto diz que sim, precisando entre risos que não gosta de usar "a palavra muito corrente que é "paixão". As paixões matam, sabe?... Não são coisas boas. O amor é outro sentimento". Joana Pontes vai mais fundo: "O António é do Douro e terá um amor pelo Douro diferente do meu, que venho de fora embora tenha lá uma costela. Mas, à medida que vamos conhecendo estas pessoas, olhando para este ritmo da Natureza que é absolutamente fascinante, começamos a ver a paisagem mudar, a partir do ponto de vista deles, e isso é impressionante."
Essa experiência acabou por transformar o filme a partir do projecto original, como explica António Barreto. "Faço sociologia e história, logo a minha primeira tendência é explicar com muitos pormenores, porque ainda por cima gosto de estatística e números. No princípio, disse à Joana que tínhamos de contar a história toda, a começar no século XVII... O vinho do Porto tem esta imagem de tradição. Mas, de todos os sectores em Portugal que era preciso reconverter do ponto de vista económico, desde há trinta ou quarenta anos, o vinho é talvez o maior sucesso, no Douro em particular. Foi o tempo em que o Douro fez uma enorme revolução. Para mim, isto é tudo para explicar, e por escrito (risos). E tudo está bem quando você percebe que uma imagem, um olhar, duas frases conseguem, em segundos, traduzir estes paradoxos. Basta olhar. Não é preciso estar a descrever." |