Os trabalhadores nas vindimas não sabem onde mora a poesia do vinho. Mas estão certos de que sem as suas mãos não há néctar dos deuses - ao que eles chamam carinhosamente "vinhaça".
Mulheres e homens apressam o passo nos carreiros, despem as cepas sem olhar para os cachos, sem tratamentos diferenciados para as uvas tintas ou brancas, não pensam nas melhores combinações entre vinho e o menu. Há sol, mas é o medo de que venha a chuva - e encontre as vinhas desprevenidas, encharque as raízes e estas conduzam água para os bagos - que rege os seus dias. As 14 mulheres e os dez homens que apanham uva em Fernando Pó, Palmela, não estão a fazer enoturismo. A maioria tem entre 50 e 70 e muitos anos e repete a faina das gerações que os precederam. Se a habilidade de apanhar uvas estivesse definida num caracter, o seu ADN portaria o ofício das vindimas. Neste ano, a colheita começou no dia 19 de Agosto e deve seguir por mais nove ou dez dias. São responsáveis directos pelos quatro milhões de litros de vinho que a Casa Ermelinda Freitas estima produzir nesta colheita. Quem os vê trabalhar, cansados mas inquietos, não hesita em suspeitar de que a poesia do vinho se aloje nas rugas do rosto, nas dobras da pele das mãos e nas rachas das unhas dos apanhadores de uva.
Maria Fernanda Gregório tem 64 anos e não se lembra ao certo de quantos meses tinha quando se estreou na vindima. Ouviu que primeiro ficava no cesto da bicicleta e recorda-se de se arrastar pelo carreiro. "Se calhar dei os primeiros pas- sos na vinha. A minha avó levava- -me para o campo. Assim que tive idade, comecei a apanhar uva." A "idade certa" para começar varia entre os oito e os onze anos, sendo que os rapazes podem ir mais cedo para o campo. Marina Fernandes, 66 anos, meteu a cara na vinha aos 11. Faz parte da primeira geração de mulheres "autorizadas a descaldeirar" - nivelar o solo ao redor da cepa com a enxada e retirar as ervas.
O marido de Marina vem logo atrás, no carreiro oposto arrasta a sua tina até encher, o que rende uns 20 quilos. "Eu não sei ler nem escrever e na região não há nada para se fazer. No Verão apanhamos a uva, no Inverno fazemos a poda e a cura das cepas. É um trabalho pesado, chega-se à noite com o corpo a implorar cama", conta José de Oliveira Fernandes, 75 anos. O grupo de 24 agricultores compõem a equipa de campo da Casa Ermelinda Freitas, o que significa que há trabalho durante oito ou nove meses por ano. Em Agosto e Setembro, no máximo até Outubro, faz-se a apanha da uva. De Novembro a Março, com "a ajuda de Deus" Maio, trabalham na poda e na cura das cepas. Depois são demitidos e vão para o desemprego. "É a sazonalidade da nossa vida, trabalhamos durante oito meses e ficamos desempregados outros quatro", explica Maria Lucinda, 54 anos. Nas vindimas os trabalhadores recebem 33 euros por dia, com os encargos sociais por conta da patroa. Durante a poda, no Inverno, ganham 28 euros ao dia.
Ema, 39 anos, nasceu em Agualva de Cima, onde vive. Nas terras em que colhe a uva o clima é do tipo mediterrânico continental, sendo influenciado pelas bacias do Tejo e do Sado. O solo é de areias e arenitos. "Usamos uma bata que vem até à altura do rabo. Por cima uma camisa bem fechada, para proteger os braços. Calças, meias e sapatilhas. O chapéu é para aliviar do sol e as luvas para não magoar as mãos. Mesmo tapada chego a casa com areia no corpo, a terra faz parte de nós. Ei, acho que perdi a minha camarada!", assusta-se Ema.
O trabalho da apanha da uva depende de um esforço concentrado e contínuo da equipa. Colhem em duplas, cada trabalhador a apanhar as uvas de um dos lados da cepa. A tina é arrastada até ficar cheia, quem está do lado esquerdo do carreiro carrega os dois baldes para a recolha. A levantar poeira vem o tractor, logo atrás. A esvaziar as tinas no balde de aço inoxidável acoplado à máquina estão os irmãos Joaquim e Francisco Conceição, com 45 e 42 anos. Após entornarem 32 tinas o balde fica cheio com 600 quilos de uva. O ruído que se segue anuncia Ana Maria, a guiar um Massey Fergson 133 MK, um modelo apropriado para a recolha e redistribuição dos baldes. No sábado o reboque virou-se, havia uma pedra no caminho. Por sorte, Maria Lucília, 54 anos, que anda pendurada atrás do reboque a atirar tinas, com cuidadinho para não ferir as cepas, estava a beber água na altura do acidente.
Todos bebem da mesma caneca, que repousa sobre o galão d'água disposto na entrada do carreiro. Repôr a água é tarefa da Maria Dias Pato, 71 anos. Depois de uma vida a ir para o trabalho a pé, aos 50 anos, comprou uma bicicleta e aprendeu sozinha a guiá-la nos fins de tarde. Aos 60 anos, amealhados 350 contos, investiu numa moto. "Este ano é o último, estou muito cansada. O feitor é que me pediu: 'Maria, preciso de ti, és tu quem prepara o comer.' E aqui estou. Eu nunca fui à escola, os meus pais o que me deram foi o ensino do trabalho". A lenha, recolheu-a quando chegou, agora é só preparar o fogo de chão, dispor as 14 panelas do dia e cuidar dos grelhados. Os agricultores trazem os ingredientes já temperados nos tachos. Hoje há batatas com sardinha, entremeada com arroz, massa com febras e ervilhas com frango.
Faleiro, Casinha, Madalena, Coelhos... nomes com que os trabalhadores baptizaram as terras onde fazem a vindima. Hoje estão na Propriedade do Horácio. Apanham a Castelão. A terra tem 16 hectares, a média é de 3200 pés por hectare. A distância entre cada cepa é de 1,10 metros e o padrão entre os carreiros de 2,5 metros. Uma cepa assim da boa pode ter 40 cachos de uva. Nesta temporada houve dias em que cada trabalhador recolheu 1300 quilos de uva. Foi o ano perfeito. "Quem não fizer vinho bom este ano nunca mais o faz. As estações foram ideais, os bagos estão negros e doces, adequados para vinhos especiais", avalia Arlindo Castelão, 54 anos, caseiro responsável pelo grupo, há 24 anos nas vindimas. "É preciso ser criativo, encontrar formas de fazer o trabalho render ao máximo. Os patrões confiam, este ano vieram à vindima apenas uma vez", orgulha-se .
"Faço o meu trabalho com gosto, mas não estou aqui por opção. É um trabalho muito duro. No Inverno é pior, as camadas de gelo sobre as cepas", diz Anabela Ribeiro, 60 anos. Os filhos dos trabalhadores das vindimas não querem saber do campo. O casal Bruno e Carina, com 31 e 22 anos, são excepção. "Perdi o emprego na fábrica de pré-moldes e tive de vir para as vindimas. É preciso ser desenrascado. Não há nada que não se aprenda, estou cada dia mais rápido", repara Bruno. Naciolinda Cantante Neto, 60 anos, aproveita a pausa do almoço para descansar as pernas. Explica que o vinho é muito melhor do que os sumos, "cheios de corantes". Gosta de vinho e bebe-o em casa. Lembra-se de no Natal ter provado uma garrafa do que é feito com as uvas que apanha. Soube- -lhe bem o aroma e aprovou o sabor. Havia poda das cepas no outro dia e foi dormir cedo. |