Pintor, fotógrafo, agrónomo, cartógrafo, polemista, ensaísta, foi uma personagem maior do século XIX português. Sem ele, o vinho do Porto não poderia ter aquela aura romântica e misteriosa que lhe consolidou a imagem internacional. O Douro que lhe alimentou o génio foi o palco que lhe retirou a vida. Joseph James Forrester nasceu faz hoje 200 anos.
O quadro de Auguste Roquemond que retrata Joseph James Forrester na meia-idade mostra-nos um rosto sereno mas inquisidor. Na expressão do seu olhar encontra-se a pose necessária do retrato, mas não é difícil adivinhar no estilo da sua pose a densidade de uma das biografias do século XIX português que vale a pena conhecer. Aventureiro e diplomata, irascível e condescendente, amigo da família real e de camponeses miseráveis, aliado devoto ou feroz adversário, agrónomo, cartógrafo, pintor, fotógrafo, negociante e lavrador, Joseph foi tudo e fez de tudo. Nasceu faz hoje 200 anos em Kingston upon Hull, uma cidade anódina da Grã-Bretanha, mas o essencial da sua vida foi devotado a duas grandes paixões: o Douro e os seus vinhos.
Chegou ao Porto com 22 anos, nos dias quentes da guerra civil entre os partidários de D. Miguel e o irmão D. Pedro. Cedo impôs a sua imagem de marca: a de uma personagem que raramente tolerava o meio-termo, que só valia a pena odiar ou venerar. Os comerciantes britânicos da Feitoria estiveram do primeiro lado da barricada; a alta nobreza do regime, a Câmara do Porto e, principalmente, os lavradores do Douro do outro. Com excepções, como é natural. O negociante Robert Woodhouse foi um dos seus amigos dilectos. O escritor Camilo Castelo Branco um dos seus inimigos figadais. O que tinha Forrester para ser assim?
Mal chegou, em 1831, para trabalhar na firma exportadora de vinho do Porto de um tio, a Offley, Forrester & Webber, começou logo a manifestar a propensão para o desalinho. Contrariando a regra já secular da comunidade, dedicou-se a aprender Português e a tecer relações próximas com portugueses. Casou-se com a britânica Elisa Cramp, em 1836, é certo, e em bom rigor procurava seguir as notícias do Times e visitar Londres, onde tinha negócios e amigos. Mas quebrou o vínculo obrigatório e formal à comunidade britânica, que, por essa altura, tinha as suas próprias regras, o seu próprio espaço de convivialidade, a sua própria igreja e até, em certos casos, a sua própria justiça. Forrester, caso talvez único, nunca foi membro da poderosa Associação Britânica do Porto que se reunia com cerimónia na Feitoria ainda existente.
Pelo contrário, a vida dos indígenas atraía-o crescentemente. Na sua casa portuense, na Ramada Alta, juntava negociantes portugueses, artistas portugueses, facções políticas de portugueses que se odiavam. O duque de Saldanha esteve uma noite lá, no primeiro andar, enquanto no rés-do-chão os seus inimigos aguardavam o rescaldo das conversas com Forrester. Nos primeiros tempos, teve dúvidas sobre os nacionais. Execrava a sua disposição para se "submeterem a qualquer indignidade, em vez de lutarem firmes na sua própria defesa". Lamentava a falta de higiene, "excepto nas cidades maiores, onde o estilo londrino e parisiense era seguido". Mas, desde o primeiro olhar, jamais deixou de venerar o Portugal rural, esse "cenário belo, intenso e romântico". Ao contrário dos hábitos ingleses, começou a viajar com frequência ao Douro para provar vinhos e avaliar colheitas.
Quando os negócios relaxavam, o que sempre tentou provocar (sempre foi mais um lavrador do que um comerciante), dedicava-se a pintar. Pintava tudo: trechos do rio, retratos dos reis de Portugal, de negociantes, dos mercados de rua, do cenário urbano de Porto e Gaia, igrejas. O quadro da Rua Nova dos Ingleses, de 1834, onde aparecem 34 comerciantes britânicos e nove portugueses é de uma minúcia extravagante - o original, que estava nos escritórios da Offley Forrester em Londres, foi destruído na II Guerra Mundial. O seu interesse pela etnografia levou-o a criar uma série dedicada aos "costumes portugueses", pelos quais tentava reproduzir a variedade dos trajes regionais. Essa colecção, que um apaixonado coleccionador norte-americano de tudo o que diz respeito ao vinho do Porto comprou por acaso num alfarrabista de Londres, pode, por estes dias, ser vista na exposição dedicada ao barão no Museu do Douro, na Régua.
A "pureza original"
Forrester entra definitivamente para a História quando decide desafiar o modelo de negócio que, na época, era a principal alavanca da economia nacional, o vinho do Porto. E fá-lo, como seria de esperar, contra os seus compatriotas. Num folheto publicado em Londres, no ano de 1843, intitulado Uma palavra ou duas sobre o vinho do Porto! Dirigida ao público britânico em geral mas particularmente aos cavalheiros; mostrando como e porquê é adulterado e mostrando alguns meios para detectar essas adulterações. Por alguém que reside em Portugal há 11 anos, Forrester põe em causa o modelo de produção e reclama o regresso à "pureza original" do vinho do Porto. O combate de Joseph James pode parecer diletantismo, mas não é. O que ele reclamava é que se recuperasse o "processo antigo" da produção de vinho do Porto, que consistia em pisas prolongadas e na adição de pequenas quantidades de aguardente, em detrimento de uma tendência que então ganhava fôlego: a paragem da fermentação com uma generosa adição de aguardente, o reforço da cor com baga e o aumento do teor de açúcar com a adição de jeropiga.
Sem o saber, Forrester antecipava a tendência actual dos vinhos durienses, concentrados, tranquilos e secos. Mas, como seria de esperar numa época difícil para o comércio, abria portas a intermináveis polémicas. A generalidade dos comerciantes ingleses acusava-o de ideias "falsas e vagas" ou de recorrer a "subterfúgios por sinistros motivos". O que é facto é que os seus vinhos secos e "puros" se vendiam pior no grande mercado mundial da época, o britânico. Mas a sua causa atraiu simpatias no Douro. Numa crónica publicada em 1843 num jornal do Porto - O Periódico dos Pobres -, um autodenominado "velho lavrador do Douro" escrevia: "Se este sistema, sendo o de fazer vinhos à antiga, fosse seguido pelo comércio todo, então poderíamos esperar tornarmos a ver os vinhos do Porto a gozar o seu inteiro crédito; porém, infelizmente, como o gosto ainda continua no geral para vinhos negros, fortes e doces, e os vinhos puros o não são, os rejeitam, o lavrador não tem remédio senão fazer os vinhos da maneira que lhes promete o maior interesse".
Forrester obteve o apoio de 102 dos 121 párocos do Douro, muitos lavradores pequenos juntaram-se-lhe e várias câmaras declararam-no como "lavrador do Douro", uma honra que nenhum outro britânico conseguiu. Mas a sua causa estava perdida. O combate contra uma tradição já profundamente arreigada tinha os dias contados. "Apesar de inteligente e influente, Forrester era um Dom Quixote idealista investindo contra os moinhos dos interesses comerciais e, a este propósito, foi uma fortuna para a história do vinho do Porto que tenha perdido", escreve a propósito a historiadora Sarah Bradford.
A paixão dos mapas
Nesta fase da sua vida, porém, Forrester entrara já definitivamente numa outra onda. Tornara-se cartógrafo. O Douro era a paixão que mais energia lhe consumia. Para o estudar até ao mais ínfimo recanto mandou construir um barco rabelo de luxo, com dormitório, restaurante e garrafeira, pagava altos salários para ter os marinheiros mais experientes e obrigava-os a vestir farda. Nas margens do rio, ou nas aldeias miseráveis da região, tornou-se uma lenda. Subiu e desceu montes e vales. Identificou 210 rápidos, mediu altitudes, registou curvas de nível, sinalizou lugares, quintas e povoações. Os seus dois mapas principais (The Wine District Alto Douro e The Portuguese Douro and the Adjacent Country) são de uma beleza rara e exprimem um esforço colossal face aos meios disponíveis na época. "A gigantesca e bem executada tarefa" a que se propusera mereceu-lhe distinções da Câmara do Porto. O rei D. Fernando II, que recebeu a primeira cópia do Paíz Adjacente, conferir-lhe-ia o título de barão anos mais tarde (1855).
O seu espírito irrequieto, porém, exigia mais. Por volta de 1850, aprende a arte fotográfica e torna-se exímio a retratar pessoas, lugares e, uma vez mais, costumes regionais. Muitas das suas obras estão expostas em colecções de prestígio mundial em Inglaterra, Escócia e nos Estados Unidos. Os seus auto-retratos mostram-nos uma figura obesa, desleixada, intrigante. Depois da morte da mulher, em 1847, tornara-se um vulto errante, tendo sempre o Douro e o círculo das vinhas como palco preferencial. Mas não deixa de se dedicar ao estudo. Entre 1852 e 1860, publica três edições do ensaio Portugal e as suas Capacidades, vencedor do Oliveira Prize, atribuído por um comerciante inglês, deputado e figura grada dos liberais, de ascendência portuguesa. Nas suas páginas, traça-se um duro e profundo retrato do país, das suas gentes e dos seus vícios, das suas riquezas naturais e do seu atraso irremediável. Forrester cita um "celebrado conde" que era contra a construção de estradas por facilitarem a invasão de exércitos estrangeiros, propõe a construção de um porto em Leixões e advoga a urgência de se construir uma linha de caminho-de-ferro entre Lisboa e o Porto. O seu lado visionário sempre presente.
Seria improvável que uma vida assim cheia tivesse um epitáfio tranquilo. Forrester não o teve. Acabaria por ser vítima da sua paixão: o Douro. No domingo 12 de Maio de 1861, descia o rio depois de uma estância na Quinta do Vesúvio na companhia de Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha, com quem se disse ter mantido um caso, e de outras 16 pessoas. No temível Cachão da Valeira, o rabelo afundou-se. A Ferreirinha e a maioria dos passageiros salvaram-se. O barão desapareceu nas águas e o seu corpo nunca mais foi encontrado. Tinha 52 anos.
Os mitos perfeitos têm sempre um lado empolgante e outro trágico. Forrester foi assim. Ainda que Camilo tenha considerado que "a morte desastrosa do barão, em 12 de Maio de 1861, é uma das mais notáveis vinganças que o rio Douro tem exercido sobre os detractores do seu vinho", a sua memória seria enaltecida em biografias, homenagens, exposições durante os anos seguintes. Para os durienses e, em geral, para os portugueses, ele foi a antítese da imagem exploradora e arrogante que os britânicos alimentaram no Douro e no Porto até há duas gerações. As suas pinturas e fotografias sustentam-lhe uma imagem de artista que se completa com o utilitarismo dos estudos que fez sobre o oídio, sobre o país ou com os seus prodigiosos mapas. Foi "o mais admirável homem que o comércio do vinho do Porto alguma vez produziu", escreveu Sarah Bradford. |