É um museu sem precedentes, que ambiciona abarcar toda a Região Demarcada do Douro, através de uma rede de núcleos locais.
Mais de uma década após ter sido criado no papel, e após vários acidentes de percurso, o Museu do Douro abre hoje finalmente as portas, com a inauguração da sua sede - na recém requalificada Casa da Companhia, na Régua - e a abertura ao público da exposição Barão de Forrester, Razão e Sentimento. Uma História do Douro (1831-1861). A cerimónia, na qual estarão presentes José Sócrates e o ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, marca o arranque do Museu do Douro enquanto instituição em pleno funcionamento e com sede própria, mas assinala também o fim de um longo processo, que teve avanços e recuos e sofreu vários percalços, o último dos quais foi a saída do seu primeiro director, o historiador Gaspar Martins Pereira, substituído no início do ano passado pelo arquitecto Fernando Maia Pinto, que já dirigira o Parque Arqueológico do Côa.
Além da mostra dedicada a Forrester, o escocês que se apaixonou pelo Douro no século XIX, comissariada por Isabel Cluny, os visitantes poderão ainda ver a exposição permanente do museu, Memória da Terra do Vinho, inaugurada em Maio passado no Armazém 43 - um dos edifícios do museu, próximo da Casa da Companhia -, e uma retrospectiva da pintura de Tito Roboredo (1934-1980), esta na sala onde irá ficar o futuro restaurante. Pequenos conjuntos de obras de outros artistas recentes estão espalhados por outros espaços do museu, como o Wine Bar ou a loja. Comprada pelo Estado em 2004, por 1,7 milhões de euros, a Casa da Companhia, um edifício setecentista onde funcionou a Companhia das Vinhas criada pelo marquês de Pombal, foi requalificada pela empresa João Fernandes da Silva, SA, de Braga. A obra, que terminou há dias, custou, incluindo equipamentos, 5,2 milhões de euros, co-financiados pelo Programa Operacional de Cultura. O projecto de arquitectura é de Duarte Cunha, que venceu um concurso público ao qual também concorreu o peso-pesado Eduardo Souto de Moura.
A inauguração da sede do museu devia já ter ocorrido no passado dia 14, quando se cumpriram sete anos sobre a elevação do Douro Vinhateiro a património mundial, mas Sócrates invocou motivos de agenda para protelar a sessão. Foi o último dos muitos adiamentos de um projecto que assumiu força de lei em 1997, quando o PS e o PCP apresentaram no Parlamento uma proposta de lei, aprovada por unanimidade, que instituía o Museu do Douro, prevendo já a sua natureza de museu de território polinuclearizado, com sede na Régua, mas abrangendo toda a região demarcada.
Alguns dos futuros pólos museológicos que funcionarão em rede com o Museu do Douro deverão, segundo Maia Pinto, estar a funcionar já no início do próximo ano, como o Museu do Imaginário, em Tabuaço - centrado nas lendas e tradições orais do concelho -, ou o Museu do Pão e do Vinho, em Favaios. Entre os vários outros que estão já, também, a ser desenvolvidos, contam-se um futuro núcleo da seda, em Freixo-de-Espada-à-Cinta, um pólo em Barca de Alva dedicado à memória da linha de caminho-de-ferro do Douro - que Maia Pinto espera que sirva como "chamada de atenção" para a desejável reabertura do troço entre Pocinho e Barca de Alva - e um núcleo centrado na cereja e nos arrais (designação dada aos mestres dos barcos), a instalar em Mesão Frio.
O fantasma de Gaspar
O director do Museu do Douro está ainda empenhado em colaborar com alguns museus já em funcionamento, como o do Ferro, em Moncorvo, ou o do Azeite, em Mirandela.
Para o futuro próximo, tem previstas duas grandes exposições, uma sobre o rio Douro, comissariada por Álvaro Domingues, Teresa Soeiro e Lúcia Rosas, e outra sobre a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Esta criação de um conjunto de núcleos museológicos a funcionar em rede com o Museu do Douro está prevista na lei que o criou, mas o socialista António Martinho, actual governador de Vila Real, a quem se deve a redacção final da proposta que o Parlamento votou em 1997, manifesta reservas ao modo como ela está a ser levada à prática. "A ideia era a de que esses pólos deveriam surgir das dinâmicas próprias dos municípios e das empresas e instituições locais, e agora está-se a desvirtuar isso, com núcleos criados um bocado a martelo".
Sócio número um da Associação dos Amigos do Museu do Douro (AAMD) e figura central do longo processo que veio a desembocar na inauguração que hoje se comemora, Martinho diz que não quer "estragar a festa", mas não esconde a sua mágoa pelo afastamento de Gaspar Martins Pereira, que, desde o início, liderou o projecto no terreno. E mantém mesmo a esperança de que o historiador ainda volte ao museu, "não agora, mas talvez daqui a três anos".
O PÚBLICO tentou ouvir Gaspar, que preferiu não fazer declarações. "Estando afastado do projecto, não seria simpático estar agora a intrometer-me". No entanto, mantém, de facto, uma ligação ao Museu do Douro, enquanto membro da Associação de Amigos, e foi o primeiro subscritor da lista que venceu, já no início deste ano, as eleições para os respectivos órgãos dirigentes. Gaspar não integra, todavia, a direcção, cuja presidente é Maria do Céu Esteves, uma histórica do PS, que sucedeu no cargo ao padre Amadeu Castro. Este último integra ainda o Conselho de Administração da Fundação Museu do Douro e, segundo António Martinho, "devia ter posto o lugar à disposição quando perdeu as eleições", uma vez que foi nomeado para o cargo enquanto representante da AAMD.
Alguma turbulência
A actual direcção da AAMD, cuja assembleia geral é presidida por António Barreto, mantém a colaboração com os actuais responsáveis do Museu do Douro, mas as relações pessoais não são as melhores. Maia Pinto, ainda que reconhecendo que a AAMD tem mantido "uma actividade a todos os títulos notável", diz que Maria do Céu Esteves foi eleita com "um manifesto eleitoral muito falso, muito inimigo do Douro e muito violento para a direcção [do museu]". Refere-se ao documento da candidatura, no qual se pode ler, por exemplo, que, "no atabalhoado processo da construção da sede", se "cometeram erros financeiros, técnicos e patrimoniais, alguns deles irreparáveis" e que "a direcção da Fundação não foi capaz de definir áreas de competências, permitindo ou fomentando a conflitualidade interna, a confusão de atribuições, a indefinição programática e um nítido empobrecimento do diálogo entre as várias instâncias envolvidas no processo de construção de um verdadeiro Museu de território".
Para Maia Pinto, "o que importa é a abertura do museu", e crê que "a vontade de menosprezar a obra" não irá afectar "o andamento real" do projecto. Reconhece que "houve alguma turbulência" após a demissão de Gaspar, mas que esta já se "esvaziou". O que levou à saída do historiador foi um conflito com a então directora-geral Suzana Coelho, que Gaspar acusava de estar a interferir nas suas próprias competências. E lançou um repto ao presidente da fundação, José António Sarsfield Cabral, dizendo que ou a demitia, ou saía ele. Sarsfield Cabral optou por demitir ambos, extinguindo o cargo de Suzana Coelho, que Maia Pinto agora acumula com o de director do museu.
Fernando Maia Pinto, dirigente do Ippar, substituiu Gaspar Martins Pereira na direcção do Museu do Douro. |