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O tempo e o homem, esses grandes escultores do Douro

Público, P2 | 10-10-2008 | Geral, Regiões, Outros
Douro, estrada Pinhão-Sabrosa, Quinta da Cavadinha - que Miguel Torga chegou a descrever como "o mimo das quintas" da região.
São três horas da tarde: faz um sol quente de Verão fora de estação que se abate sobre o verde já cansado da paisagem. Ao fundo corre o escasso rio Pinhão, com o Vale Mendiz e a Quinta do Noval em frente; percebe-se que há trabalhadores a fazer a vindima, pontos minúsculos por entre o recorte das surribas e dos vinhedos; um ou outro camião serpenteia na estrada...
 
Parece que o tempo parou ali, como Cristo parou em Eboli. Joana Pontes contesta esta impressão: "O tempo não pára, o tempo é que faz o Douro, é ele quem trabalha o vinho." É também ele, na sua perspectiva, o protagonista do documentário que tem estado a rodar no Douro - o tempo e "o trabalho colossal do homem que moldou a face desta paisagem única no mundo", acrescenta António Barreto.
Joana Pontes é a realizadora, António Barreto é o autor - são a mesma equipa de Portugal, Um Retrato Social, a série que marcou a produção documental da RTP no ano passado, e que agora faz As Horas do Douro.

O desafio para o projecto partiu de Joana Pontes, depois de António Barreto lhe ter oferecido um livro que tinha escrito sobre o Douro. "Demo-nos muito bem a fazer o Retrato Social. Normalmente, é muito difícil trabalhar com autores, que vêm de fora e não percebem nada do que estamos a fazer", diz a realizadora. O segredo do sucesso e do bom relacionamento entre ambos na série documental sobre o nosso país das últimas décadas foi terem sabido "estabelecer regras precisas para o trabalho", acrescenta Joana Pontes (que assinou ainda com Barreto as séries Nós e a Televisão e A Televisão e o Poder, igualmente para a RTP).

Ambos têm um vínculo pessoal com o Douro: António Barreto viveu nele a sua infância e adolescência, entre a Régua e Vila Real; o pai de Joana Pontes era de Trás-os-Montes, e ela visita a região com frequência. Decidiram reunir essas suas experiências e procurar o denominador comum entre "o olhar mais sociológico" do investigador do Instituto de Ciências Sociais e o interesse que, no seu caso, ia mais para "as histórias particulares das pessoas", diz a documentarista.

O registo de documentário permanece assim neste novo projecto da dupla, mas agora com ambições novas. As Horas do Douro vai ser uma longa-metragem de duas horas (haverá uma versão mais curta para a televisão) que quer passar nas salas e nos festivais, antes de chegar à RTP e à edição em DVD.
António Barreto utiliza a metáfora dos livros de horas medievais para explicar o que será o filme. Estes livros registavam para os reis e princesas as orações e os trabalhos agrícolas da semana e de cada mês, e muitos deles tinham "iluminuras maravilhosas, que davam à vinha um relevo especial". As Horas do Douro acompanha também o ciclo do vinho e da vinha nas suas diferentes estações e trabalhos, do Inverno ao Outono, quando acaba a vindima.

Trabalho de robô

Na tarde em que o P2 assistiu à rodagem, não era já para o vale das vinhas do Pinhão que a câmara de Joana Pontes estava voltada - o trabalho na vinha já tinha sido registado nas semanas e nos meses anteriores, desde Março. Nesse dia, a equipa filmava o trabalho interior nos lagares, aquele que antecede a entrada em cena do tempo, esse grande escultor (e pintor) do vinho do Porto - e do Douro.

A Quinta da Cavadinha possui os equipamentos mais sofisticados para o trabalho específico de adega - "é talvez a mais moderna do Douro", arrisca António Barreto. Contém um complexo de cinco lagares mecânicos e robotizados que fazem a pisa das uvas, "replicando o mais fielmente possível, e com ganhos evidentes, as características do trabalho humano", explica Miles Timothy Edelman, o enólogo inglês (formado em Adelaide, Austrália) desta quinta actualmente propriedade do grupo Symington.
Entre estas inovações avultam os robôs que fazem a pisa e que estão equipados com sapatões de silicone cuja textura se aproxima da dos pés humanos, "evitando assim que o aço esmague as grainhas e altere o sabor do vinho", explica o enólogo, que trabalha no Douro desde 2000. Também o ciclo de fermentação do mosto é controlado por sensores que activam um circuito de água quente ou fria, conforme as necessidades.

"Isto agora faz-se assim, e é tudo mais fácil", diz Acácio Peixoto, tanoeiro, 55 anos e empregado da empresa há 20 (começou na Cockburns, uma da meia dúzia de marcas que actualmente integram a Symington e fazem deste o maior grupo no sector do vinho do Porto). O seu trabalho, durante o ano, é fazer as pipas de madeira onde o vinho do Porto recolhe durante longos anos a acção fundamental do tempo, e para este efeito ainda nada substitui a natureza da madeira. Por altura das vindimas, Acácio Peixoto, como outros seus companheiros, é chamado a "ajudar" nos trabalhos da adega da Quinta da Cavadinha. E não mostra saudades dos tempos em que chegou a entrar na roda das pessoas que faziam a pisa, pé a pé, passo marcado, durante horas seguidas.

Apesar de a magia do Douro surgir muitas vezes associada a essa imagem da tradição e da intervenção das mãos (e dos pés) humanos, António Barreto diz que é preciso denunciar essa ideia folclórica, por trás da qual está "o esforço brutal do trabalho braçal e humano" que, durante os últimos 400 anos, fez o Douro tal como hoje o conhecemos e admiramos. "Trabalhar no Douro era das coisas mais duras na História de Portugal", acrescenta.

Ameaças do progresso Daí que o sociólogo veja com bons olhos a entrada das novas tecnologias no ciclo da vinha no Douro, naquilo em que elas vêm substituir, com vantagens óbvias, o trabalho humano. Hoje não há condições, nem necessidade, de fazer as pessoas acarretarem cestos com 70 quilos de uvas, ou de colocar rodas de 20 pessoas num lagar durante ciclos de cinco horas seguidas a pisar as uvas. "É um trabalho extremamente penoso, que só os urbanos acham que é giro e muito tradicional."
É claro que há supostos "progressos" no Douro que António Barreto vê com inquietação. Um deles é "o desejo frenético de construir auto-estradas sobre as vinhas e o vale". Uma atravessa já a região entre Vila Real e Lamego, outras são anunciadas para o Pocinho e para Barca d'Alva. "Se se começa a atravessar isto com auto-estradas, que não parecem nada necessárias para tão poucos carros, haverá um risco ecológico e estético indiscutível", diz o sociólogo, referindo outras preocupações: a erosão resultante da aposta extensiva, nos últimos anos, das plantações da vinha ao alto e a tendência para se reduzir a diversidade das castas. "O Douro tem mais de 100 castas, 60 das quais são bem conhecidas. De repente, toda a gente começa a querer fazer vinho só com a Touriga Nacional. Isto leva à perda de identidade e, no dia em que o vinho do Douro for igual ao dos americanos ou australianos, ele morre", adverte o Barreto, que, no entanto, se mostra também convicto de que há na região uma atenção ao necessário equilíbrio entre a tradição e a modernidade, e que ela continuará a manter a diferença e toda a riqueza da marca Douro.

Este olhar sociológico não deixará de estar presente em As Horas do Douro, com estreia prevista para o próximo ano. Mas o documentário produzido pela Filmes do Tejo e com um orçamento de 260 mil euros (subsidiado pelo Instituto do Cinema e Audiovisual, Fundo de Investimento para o Cinema e Audiovisual, RTP, Gulbenkian, El Corte Inglês e várias autarquias do Douro) vai além desta vertente. "O ponto de partida do filme é o caso do Douro: há aqui um esforço colossal. Tudo aquilo que aqui vemos foi feito pelo homem", nota António Barreto, que, como Agustina, só vê um caso idêntico nos arrozais da China.

Joana Pontes começou o trabalho de rodagem precisamente com um voo de helicóptero sobre o vale do rio Douro. "Filmei alguns planos, mas não fiquei satisfeita, nem sei se os irei utilizar na montagem final", diz a realizadora, que teria preferido fazer essa viagem em balão, o que não foi possível, por razões de segurança.

Durante mais de meio ano e em diferentes momentos, a equipa filmou os trabalhos na região, desde as caves de Gaia até às arribas do Alto Douro. E, para além da evidência física dos trabalhos da poda, da sulfatação, da vindima, Joana Pontes teve a preocupação de registar "aquelas rotinas surdas e desconhecidas que se passam nas adegas, quando aparentemente nada está a acontecer, mas que condicionam absolutamente as vidas das pessoas". Foi no contacto com esse quotidiano que a documentarista descobriu que "é o tempo que trabalha o vinho", que é ele o verdadeiro protagonista do Douro. Não só o tempo-clima (a chuva e o sol, o nevoeiro e o granizo, o frio e o calor...), mas também o tempo que passa sobre as sucessivas gerações, fazendo com que tudo pareça parado no tempo - e As Horas do Douro vai pôr lado a lado imagens de filmes do início do século XX documentando os trabalhos da vinha, recuperadas na Cinemateca/ANIM, com sequências actuais - quando, afinal, tudo está sempre em mudança, sendo simultaneamente velho e novo, como se pode comprovar quando se saboreia um cálice de vinho do Porto.

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