Vinho do Porto: Um negócio de paixões concentrado em quatro famílias e um "outsider"
Nos últimos anos, o sector do vinho do Porto sofreu abalos sucessivos.
O resultado foi a concentração de mais de 70 por cento das vendas num núcleo duro de cinco grupos, quatro deles dominados por famílias com tradições no meio. A resposta ao poder dos grupos distribuidores foi uma das razões mais fortes para as fusões e aquisições de empresas que produzem e vendem o néctar nascido nas encostas do Douro.
Muito mais concentrado, retintamente familiar e amigo de paixões fortes e duradouras. Assim é o negócio do vinho do Porto a meio da primeira década do século XXI. Os últimos anos revelaram um bom número de negócios que abalaram vetustas estruturas empresariais, algumas com tradições seculares na região do Douro. A integração do património da casa Cockburn´s no universo empresarial da família Symington, a compra da prestigiada Barros pelos galegos da Caixa Nova, que já tinham absorvido a Burmester e a Cálem, ou o fortalecimento do grupo Taylor"s com os activos da Croft, da Delaforce e da Osborne, são exemplos de um movimento imparável que alterou profundamente o desenho estrutural do negócio de vinho do Porto.
A mais óbvia consequência destas mexidas foi a concentração do sector nas mãos de cinco grandes grupos que controlam cerca de 73 por cento de um negócio que tem rondado os 400 milhões de euros anuais (ver quadro). Este movimento centrípeto foi muito rápido. As estatísticas do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto (IVDP) dão conta disso mesmo, ao registarem uma forte diminuição dos comerciantes com dimensão acima da média, de 61 em 1999, para apenas 46 no ano passado. Há quem acredite, nesta altura, que o sector pode ter chegado a um patamar de estabilidade, admitindo-se apenas um ou outro acerto de pormenor no perfil dos grupos dominantes.
As opiniões sobre os efeitos desta concentração não são coincidentes. O presidente do IVDP, Jorge Monteiro, encara-a como "desejável" e "vantajosa", não só por se perfilar como resposta necessária ao fortíssimo poder negocial dos grupos distribuidores, mas também por ser protagonizada por gente com profundo conhecimento do sector (excepção feita ao "outsider" Caixa Nova, que se "intrometeu" no negócio sem ter tradição conhecida no mundo vitivinícola). O presidente do IVDP realça ainda um outro factor virtuoso: os "grandes" compraram empresas que se encontravam em posições "perigosas" no negócio, com insuficiente notoriedade para compensarem a sua pequena ou média dimensão. Significa isto que o futuro só deverá sorrir às empresas com suficiente dimensão para responderem aos desafios de um mercado global dominado por dezena e meia de tubarões da distribuição, ou àquelas que, apesar de pequenas, têm posições fortes e grande notoriedade em nichos de mercado para produtos de alto valor (como é o caso da Quinta do Noval e dos seus prestigiados e caros Vintage Nacional).
O fortalecimento dos principais grupos está a acentuar uma tendência que "assusta" muitos produtores durienses: as grandes casas de vinho do Porto, designadamente as controladas por famílias inglesas, que durante séculos se limitaram a comerciar sem "sujarem" as mãos na terra e nos vinhedos, estão a aumentar a produção própria, chegando já aos 20 por cento do total da região (os Symington são já o maior viticultor duriense, depois da aquisição do património da Cockburn"s). Joaquim Morais Vaz, líder da Associação de Viticultores Engarrafadores dos Vinhos do Porto e Douro (Avepod) - representativa de 54 produtores-engarrafadores responsáveis por 3,5 milhões de litros de vinho -, confessa-se preocupado com a tendência.
É que os grandes grupos estão a assenhorear-se sobretudo de propriedades de alto valor, reforçando a produção própria dos vinhos destinados às categorias especiais (vintage, late bottled vintage e "porto" com indicação de idade, produtos que estão a ganhar um peso crescente nas vendas globais). Ora, isto complica a vida dos produtores independentes de média dimensão, que pretendem defender um posicionamento profissional no sector e que têm sido capazes de fornecer vinhos de qualidade às empresas exportadoras.
O "desastre" dos preços pagos à lavoura
Resultado: para as categorias especiais, os "grandes" recorrem cada vez mais à produção própria; e, para os vinhos "standard", prescindem da qualidade dos produtores-engarrafadores, comprando às cooperativas que acolhem as micro-produções de muitos dos 35 mil produtores durienses, a maior parte deles com colheitas inferiores a 2500 litros/ano e, nessa medida, encaradas como rendimentos complementares de actividades estranhas à viticultura. Aqui reside um dos "cancros" do sector, pensa Joaquim Vaz, e uma das explicações para "os 30 anos de incompetência das cooperativas" e para o actual "desastre" dos preços pagos à produção (uma pipa de 550 litros está a ser vendida entre os 825 e os 900 euros, preços praticados há dez anos atrás).
Jorge Monteiro relativiza e enquadra os preços baixos. Lembra que há "um excesso de produção mundial" de vinho, o que, no caso da Austrália, faz com que se pague hoje por uma tonelada de uva 600 dólares australianos, contra os 1500 pagos há cinco anos. Paul Symington, actual líder do grupo familiar, reconhece que os preços baixos "são maus para todos" e confia que "os preços à lavoura hão-de subir".
Grupos dominantes ligados a famílias com tradição
Uma das especificidades da concentração empresarial no sector do vinho do Porto é que os grupos dominantes permanecem ligados a famílias com tradição no meio. Com excepção da novíssima Caixa Nova, com activos que já lhe garantem cerca de 10 por cento do negócio e o quinto lugar no "ranking", os quatro maiores estão todos ligados a famílias com tradição nos vinhos: os Symington e os donos do grupo Taylor"s têm ligações centenárias ao Douro; a família Guedes, da Sogrape, tem conhecidas e duradouras relações com o mundo dos vinhos; o grupo francês La Martiniquaise, que detém a Gran Cruz, é liderado por Jean-Pierre Cayard, descendente do fundador de um grupo que nasceu e cresceu no negócio das bebidas.
O vinho do Porto, a exemplo de outros casos de vinhos com história, com grande reputação e com uma componente artesanal forte na elaboração dos produtos de mais prestígio, parece dar-se mal com gente que aborda o negócio sem alma e sem carinho. "É preciso paixão pelos vinhos, não é só a parte económica que conta", explica Paul Symington. Terá sido essa uma das razões que levaram as frias e "desalmadas" multinacionais de bebidas a abandonarem as experiências efémeras que fizeram no sector, descontentes, também, com regras como a lei do terço (que só permite comercializar um litro de porto quando há três em stock...), com margens baixas, grandes imobilizados e, por tudo isso, com rendibilidades do capital investido muito abaixo das cifras astronómicas com que gostam de lidar.
O único vestígio que persiste da passagem das multinacionais pelo negócio do vinho do porto é a manutenção da marca Cockburn"s na posse da norte-americana Beam Global Spirits & Wine. Enfim, a pressa dos grandes potentados em multiplicar lucros não se compadece com a infinita paciência da família Symington, que esperou mais de trezentos anos até chegar à liderança do negócio. É muito tempo...