Notícia

A guerra do vinho do Porto e a falta de visão do Estado

Pedro Garcias | Suplemento Fugas, Jornal Público | 04-09-2010 | Geral, Artigos
O que parece ser uma boa decisão para os viticultores durienses pode, a prazo, vir a prejudicá-los.
Este ano, o Douro vai produzir 110 mil pipas de mosto generoso, o mesmo que o ano passado. Venceu a proposta da lavoura. Os representantes do comércio propunham 100 mil, só que o ministro da Agricultura, por via do presidente do Instituto dos Vinhos do Douro e Porto (IVDP), Vilhena Pereira, colocou-se ao lado da produção na sua velha "guerra" com as empresas exportadoras e votou a favor da proposta da Casa do Douro, que defendia a manutenção do mesmo quantitativo de 2009. Mas o que parece ser uma boa decisão para os viticultores durienses pode, a prazo, vir a prejudicá-los.

Para se ter uma ideia do que está em jogo, as tais 10 mil pipas que separavam as duas partes correspondem a uma receita de cerca de 10 milhões de euros. Era esse o dinheiro que não entrava na região se a proposta dos comerciantes tivesse vingado. Em época de crise, o Governo foi sensível ao impacto social do chamado benefício (a quantidade de vinho do Porto que cada viticultor pode produzir). Há milhares de agricultores no Douro que dependem da venda de uvas para vinho do Porto.

Nos últimos anos, o quantitativo autorizado de vinho do Porto tem vindo a baixar. Um viticultor que há 10 anos tinha direito a produzir, por exemplo, oito pipas, hoje só pode produzir um pouco mais de metade. Cada pipa, de vinho feito ou vendidas as uvas e a autorização para as vinificar a outro produtor (o famoso cartão de benefício), rende cerca de mil euros. Cortar ainda mais só agravaria a situação já de si difícil de milhares de agricultores.

As estatísticas também pareciam estar do lado da lavoura. Em 2009, foram autorizadas 110 mil pipas de mosto generoso que, somando a aguardente que é preciso adicionar, corresponderam a 139 mil pipas de vinho do Porto. Mas venderam-se 150.700 pipas. Como se não bastasse, as vendas nos primeiros meses do ano estavam a aumentar cerca de 5 por cento. Tudo boas notícias.

Mas há outros números que influenciam o negócio e que, por não terem sido levados em conta, podem tornar ainda mais sombrio o futuro do vinho do Porto. Entre 2000 e 2009, as vendas totais de vinho do Porto baixaram de 171.700 pipas para 150.700. Em contrapartida, o excesso de capacidade de venda aumentou, atingindo no último ano os 30 por cento, o maior valor das últimas duas décadas. Na prática, em 2009, as empresas de vinho do Porto podiam ter vendido, se houvesse interessados, mais 46 mil pipas, possuindo em stock quatro pipas por cada uma que venderam, quando a chamada lei do terço as obriga a ter três pipas por cada vendida.

Foi com base nestes números e nas intenções de compra apresentadas pelas empresas e cooperativas que os representantes do comércio propuseram uma redução de 10 mil pipas no total de vinho do Porto a produzir este ano, de modo a adequar a oferta à procura existente. Ao alinharem com a posição da Casa do Douro, o Governo e o presidente do IVDP acalmaram a lavoura e garantiram no imediato um encaixe maior para a região. Mas mostraram falta de coragem e visão a longo prazo.

Já se suspeitava que o aumento das vendas de vinho do Porto nos primeiros meses do ano não era sólido e os últimos meses confirmaram-no. Se tudo correr bem, é possível que as vendas aumentem este ano, mas apenas cerca de 1,5 por cento, muito pouco face à diminuição de 12 por cento registada nos últimos dois anos. As consequências são óbvias: como os excedentes vão continuar muito altos e a procura deverá ser inferior à oferta, as grandes cadeias de distribuição vão querer, e poder, comprar vinho mais barato, beneficiando da conjuntura adversa. Vendendo mais barato, as empresas e as cooperativas vão pagar menos aos agricultores. Quando se entra neste ciclo vicioso, com uma contínua quebra do preço na produção e no consumidor, as consequências poderão ser dramáticas para todos. Foi o que aconteceu ao xerês, que nunca mais recuperou.

Face à crueza dos números - entre 2000 e 2009, o valor total da comercialização de vinho do Porto baixou de 414 milhões de euros para 352 milhões -, só há uma forma de evitar a catástrofe anunciada: reduzir de forma significativa a área de vinha apta a produzir vinho do Porto (compensando justamente os viticultores atingidos), para incentivar a procura e fomentar o aumento dos preços do vinho e do valor fundiário dos terrenos. É esse o segredo do champanhe, por exemplo. No Douro tem acontecido o contrário: com a transferência de direitos de plantação das zonas altas para as zonas mais baixas, a área para vinho do Porto tem vindo a aumentar, apesar da diminuição das vendas e do aumento dos excedentes; e a área para vinhos de mesa também não pára de crescer (à custa de direitos de plantação adquiridos fora de região), apesar das necessidades do mercado não o justificar. E, com tudo isto, as terras têm perdido valor. Um hectare de vinha em Champanhe vale quase 20 vezes mais do que no Douro.

Perante este cenário, o Governo continua a insistir no erro e a pensar apenas no curto prazo, cedendo à demagogia e à chantagem de dirigentes da lavoura (Casa do Douro e algumas cooperativas) que, apregoando a sua defesa, só a têm afundado. Cândida e impunemente.

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